Um dia, saí para caminhar, não tinha lugar algum para ir e
em lugar algum eu queria estar naquele momento, queria simplesmente ouvir o eco
de meus passos e observar a vida jogada nas calçadas, era noite uma neblina
deixava a rua úmida e um tanto sinistra, não era um lugar qualquer em que eu
caminhava, eu desfilava pelo câncer da cidade onde a imundície material e
humana era dominante, prostitutas nas esquinas se ofereciam em silêncio
entorpecidas pela droga e o álcool, espectros que um dia já foram homens povoavam
terrenos baldios iluminados apenas pelo isqueiro que acendia um cachimbo de
crack, era arriscado estar ali, sabia que a qualquer momento eu poderia me
tornar parte do lixo, ou ser sufocado por ele.
Mas naquela noite em
especial eu não ligava para isso, pelo menos depois de vela, numa daquelas
esquinas, vestindo roupas sujas e minúsculas, mas não foi isso que eu vi, eu vi
sua alma através de seus olhos, olhos que mesmo com pupilas dilatadas, mesmo
cambaleantes e com um sorriso que mais parecia uma lágrima imploravam por
ajuda, aqueles olhos não queriam estar ali, aquele rosto lindo aquele cabelo
mal tratado destoavam àquela vulgaridade e perversão, ela não disse nada, mas
aqueles olhos verdes que não sei se eram naturais ou não, mas deveriam ser, por
que nenhum dinheiro seria gasto com outra coisa a não ser a droga, até porque o
pagamento cobrado naquela rua era só o suficiente para uma pedra de crack; mas
daquela noite em diante muita coisa poderia acontecer, aquela mulher que eu não
sabia nem o nome, e fazia parte do lixo nunca mais sairia da minha cabeça, eu
não conseguia vela como tal, e nem os que a cercavam , eram apenas vidas que
dobraram a esquina errada e nunca mais conseguiram voltar, varias noites depois
eu passei por aquela rua, mas para minha tristeza eu não a vi mais, e repeti
minha caminhada por dias, meses a procurei, acabei fazendo amizade com os
estranhos seres da noite que se faziam presentes ali a noite, soube que o nome
daquela menina era Julia, soube que tinha dezenove anos, e que fora aluna de
faculdade de medicina antes de dobrar aquela maldita esquina e se viciar em
crack, não via seus pais há meses, e esteve ali apenas poucas noites, mas eu
não a esqueci, ela era linda, ela era minha fantasia desde aquela noite.
Eu continuava indo até lá toda noite na esperança de
encontrar meu anjo das trevas, bebia com os sem teto, e ficava até a madrugada,
fui me familiarizando com aquele mundo e sem perceber, fui aprendendo o nome de
todas minhas roupas já não eram tão limpas, perdi meu emprego, muitos quilos,
não percebi, mas eu dobrei a esquina e me perdi, depois de apenas um ano eu era
um sem teto usuário de drogas e álcool, roubava para manter meu vício, fazia
sexo sem proteção naqueles terrenos, não possuía nem um sequer valor, eu que
fui um visitante e agora era o próprio câncer; eu era um homem alto, e agora
com metade do meu peso, não sei ao certo por quantos anos eu dormi ao relento,
ou fui perseguido, surrado, quantas vezes amanheci com meu corpo molhado pela
chuva, a mesma chuva que lavava meus cortes e matava minha sede; o dinheiro
andava escasso e eu precisava de mais droga, eram quase meia noite e eu me
aventurei além daquela rua, um cara meio bêbado saiu de um bar, pensei que
seria a vítima perfeita, me aproximei enquanto ele urinava na rua, anunciei o
assalto ele reagiu desajeitadamente, sem chance, estava muito bêbado, mas nem
por isso eu deixei de esfaqueá-lo, peguei sua carteira com minha mão suja de
sangue, era tamanha minha necessidade de fumar crack que só o que eu via era a
carteira, o dinheiro, drogas, falta pouco, que não percebi que policiais tinham
visto meu ataque e já estavam bem próximos de mim, quando me virei já era
tarde, tentei atingir um deles com minha faca, mas perdi a força
repentinamente, meu pescoço e meu pito queimavam e algo quente escorria pelo
meu corpo, e em seguida uma sensação estranha e me senti desabar, não sei se
era real, mas abri meus olhos, estava cercado por pessoas vestidas de branco, e
algo descia pela minha garganta, um tubo de oxigênio eu acho, minhas veias
perfuradas por algo que não injetava cocaína, o que me confortava naquele
momento era inalar oxigênio e não fumar um cachimbo, não sentia dor, só
queimava, foram dois tiros, No pescoço e no peito, eu estava muito fraco, perdi
muito sangue, estava morrendo, mas não estava triste, pelo contrario,
finalmente eu encontrei a paz, e mais que isso, encontrei aqueles olhos, e ali
dentre a equipe médica eu vi Julia, usava roupa branca, e tinha um crachá em
seu peito que dizia Dr. Julia fontes; estava linda, olhei em seus olhos, ela
estava linda, ela encontrou o caminho de volta, mesmo que ela não me
reconhecendo, afinal só me viu uma vez e estava torpe demais para lembrar-se de
qualquer coisa; E eu ali, viciado, com AIDS e morrendo, mas feliz, Julia estava
comigo, ela encontrou o caminho de volta!
No outro dia o tele jornal local divulgou “assaltante é baleado em um
confronto com policiais; levado ao hospital local não resistiu aos ferimentos e
faleceu na madrugada de hoje, homem de aproximadamente 28 anos, que ainda não
foi identificado, entrou em confronto com policiais após assaltar e esfaquear
um homem na Avenida Tancredo neves ontem à noite, a vítima do bandido passou
por cirurgia e passa bem; e a seguir as noticias do esporte...”.
Márcio Cunha Costa
O autor, um colega de profissão, que nas horas vagas, tambem adotou a escrita como mágica, para desviar os pensamentos da realidade, vez por outra, viaja no mundo da ficção, e coloca em letras, suas ancias e angustias da visão que temos desse mundo perturbado e conturbado....
Foi um prazer abrir este espaço ao amigo Marcio, um viajante, ora da realidade, ora dos sonhos...
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